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O chão é cinza assim como o horizonte, Fraus

para cada imagem que toca as paredes


 

Um amigo recentemente me disse que toda experiência que percebemos ser importante nas nossas vidas merece ser repetida. Honestamente, durante muito tempo me perguntei sobre o por que repetir, por que fazer mais de uma vez a mesma coisa. Esse argumento me pareceu suficiente como resposta.

 

Escolho começar meu texto com essa anedota sugerindo a todos olharem pelo menos duas vezes para cada imagem que toca as paredes. Evidente que aqui há uma antecipação da operação que proponho pois, se relermos a anedota, veremos que para repetir, como diz meu amigo, antes, a experiência deve ganhar o reconhecimento de sua importância. Para resolver esse embaraço, convido a confiança enquanto afeto para a nossa conversa.

 

Vocês confiam nessas palavras que tocam essa página?


 

Caso a resposta seja sim, então posso vos dizer: nessas imagens que tocam as paredes, há algo importante.

 

Importante vem do latim medieval importans (o que aporta algo no interior de outra coisa), formada com o prefixo in - (dentro) e portans (particípio presente do verbo portare = levar, ver, portar). Ou seja, a palavra importante, dado esse jogo de decantação etimológica, designa algo que por dentro nos faz levar ou trazer algo de nós ou para nós. Isso me faz pensar o quão estranho é analisar a economia das palavras e das sensações frente a economia das moedas. Afinal, para a moeda o importante parece exportar e não importar.

 

o que de dentro podemos levar ou trazer de nós ou para nós nas imagens que tocam as paredes?

 

Preciso agora revelar uma situação que talvez crie desconfiança com as palavras. Mas quem sabe a desconfiança possa ser um outro afeto que ocupe de vontade a permanência em seguir olhando para essas linhas.

Para escrever esse texto eu não vi nenhuma das pinturas que estão aqui expostas. Escrevo do outro lado do Atlântico e como tenho pavor em ver pinturas sobre telas espelhadas, fiz uma sugestão ao Fraus. Pedi para que ele, tomando a descrição como ferramenta, me dissesse o que vê em cada trabalho. Dito isso, escrevo palavras que partem de outras palavras que, por fim, partem da pintura. Afinal, dado a distância dos corpos, prefiro ter, entre mim e a pintura, a palavra ao invés de uma tela espelhada. Entre a reprodução e a tradução, fico com a última.

 

Ter ao meu alcance a palavra e não a pintura, provoca uma mudança no sentido que uso para perceber esse gesto. O que me permite enxergar o gesto de arranhar e colocar tinta sobre a trama são os meus ouvidos.

Olhar a pintura com os ouvidos. Escutar a pintura com os olhos.

 

(...) o fundo de toda pintura é rasurado, opaco e cinzento, mas revela uma cor ocre sob a névoa cinza que esquenta todo o resto. (Parte da descrição de um dos trabalhos, enviada por Fraus para Bruno Levorin, maio de 2022.)

 

Quem é capaz de sentir calor ao ver uma pintura? Quando meus ouvidos ficam quentes, o dito popular me faz crer que alguém, longe de mim, está a falar de mim. Se a pintura é capaz de esquentar minhas orelhas então ela, de alguma forma, na distância, fala de mim. Mas se repararmos no que Fraus diz, aquilo que esquenta é todo o resto, o que me faz acreditar que, se ela esquenta as minhas orelhas, logo eu faço parte desse todo. Ao me perceber como resto de pintura, concluo que há algo em mim que também é sobra. O fundo de toda pessoa é rasurado, opaco e cinzento…

 

No trabalho de Fraus há uma zona de indistinção entre a pintura e quem vê a pintura. Uma indistinção que nos faz perceber a nós mesmos e o trabalho, na dimensão mais material, mais gestual da percepção. É a maneira como Fraus pinta, na ação e no gesto, é nos verbos que ele escolhe para confiar e desconfiar das imagens, que nos faz experienciarmos a nossa presença diante da coisa que toca a parede.

 

Essa materialidade radical da obra do artista nos puxa para dentro do trabalho. É ela que importa. É ela que nos importa para dentro dela. Mas há um embate. Há algo no 

trabalho que resiste a ser percebido, que resiste a nossa ação e ao mesmo tempo age por sua própria conta e risco.

 

o que de dentro age por sua própria conta e risco que o lado de fora, resiste?

 

Vibração.

 

Caso haja figura que possa ser vista em alguma pintura de Fraus, ela vibra. Vibra como um Pierrot. Vibra tanto que quase chega a desmanchar seu próprio carnaval. Essa metáfora é utilizada para sinalizar que a pintura de Fraus é tão vibrátil que por vezes corre o risco de desmanchar o próprio quadro, de fazer desaparecer a própria imagem. Pintar assumindo o risco do desaparecimento e tentar encontrar o lugar justo onde essa transformação não ocorre por completo, parece o exercício de atenção mais sublime que há para ser testemunhado nessas pinturas. O mesmo movimento que vitaliza a nossa percepção, que nos desperta para caminharmos dentro da imagem, é também capaz de nos fazer destruí-la, e aniquilar o nosso próprio desejo ao deixar de ver algo tomado pela sua própria força.

Quando a materialidade da luva, da ratazana, do pólen, da tampa de garrafa e do pedaço de pau começou a brilhar e a cintilar, foi em parte por causa do quadro contingente que formaram uns com os outros, com a rua, com o tempo que fazia naquela manhã, e comigo. Pois se o sol não brilhasse na luva preta, eu podia não ter visto a ratazana; se a ratazana não estivesse lá, eu podia não ter reparado na tampa da garrafa, e assim por diante. Mas todos estavam lá tal qual estavam, e assim vislumbrei uma vitalidade energética dentro de cada uma destas coisas, coisas que em princípio conceberia como inertes.

(Jane Bennett, Vibrant Matter)

para cada parede que toca as imagens


 

O chão é cinza assim como o horizonte. Há tanto cinza no chão e no céu de São Paulo que fica difícil não perceber essa cor como um atravessamento primordial da cidade. Dizem os físicos que a luz cinza não existe. A cor é um fenômeno que diz respeito à qualidade de uma determinada coisa em absorver e refletir luz. Assim, uma matéria de cor vermelha como o sangue, absorve todas as cores e reflete apenas o vermelho. Já um fenômeno branco como a nuvem, não absorve nenhuma cor e reflete todas elas. Um acontecimento preto como a noite, absorve o conjunto de todas as cores e por isso não as reflete.

 

Mas e o cinza? Se o cinza não existe como luz, o que faz com que ele seja refletido?

 

Algo que entra em combustão emite luz. É nesse fenômeno de mudança de temperatura de uma coisa que a cor pode também ser refletida. Para que haja cor, para além da qualidade da matéria em absorver há também que se ter calor, luminosidade. E para que uma coisa tenha calor ela precisa vibrar.

 

É possível pintar sem a luz? Se a luz cinza não existe, seguindo o nosso raciocínio, então ela não emite calor, correto? Não à toa, chamamos de cinza aquilo que resta quando o fogo se apaga. Você já experimentou tocar o chão da cidade de São Paulo? Para saber que o chão é cinza não basta vê-lo. Para pintar o chão cinza, é necessário tocá-lo. Só assim cria-se a referência para então fazer a cor.

 

O calor que sentimos ao tocar o chão é um calor residual. Talvez o chão da cidade seja formado pelos restos de algo que queimou e que não vimos. E já que a gravidade é uma das maiores forças que conhecemos, se o cinza está no chão ele só pode ter vindo de um lugar.

 

O que queimou no céu para que pudesse ser feito pintura no horizonte?


 

Bruno Levorin

Junho de 2022

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