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Gênero: Paisagem, Heloísa Franco

As paisagens de Heloísa Franco habitam um cenário onde algo parece estar para acontecer e, ao mesmo tempo, já está se desenrolando. Em conversa com a artista, ela relata que sua criação parte da luz como sensação, um estado de presença. A partir disso, Heloísa começa a trabalhar o quadro a partir da dicotomia entre a luz e o gesto que, segundo a artista, são co-dependentes durante toda a sua produção. Insere o escuro e, ao mesmo tempo, o retira, num processo de adição e subtração. O antagonismo é quem dá corpo à sua produção.

Segundo Heloísa, "fico tirando, colocando, apagando, adicionando, até que uma hora pára. Parece que quando acontece essa aparição/presença a pintura se encontra. Geralmente é um gesto que aconteceu de um jeito específico, numa velocidade específica, com uma parte da mão específica que `arma´ a pintura. Quase como se minha mão guardasse sempre algo que meu olho não captura”.

O gesto e a luz, células nucleares de seus trabalhos, trazem organicidade às obras que adquirem um quê de sublime. Os pontos de luz que busca durante o processo de criação com panos, espátulas e pincéis, retirando a tinta que considera excessiva ao mesmo tempo que insere através dessa subtração, abre caminhos e sugestões de percurso mentais e visuais. Dada a dimensão dos trabalhos que são pequenos, cada gesto é de suma importância. A produção da obra envolve também buscar essa presença dentro desse pequeno grande mundo. Uma escavação em busca do próprio inconsciente, do aqui e agora. 

Molda formas e sensações que nos direcionam, o chiaroscuro amorfo neles trabalhado parece revelar a existência sem um mundo físico; o etéreo se revela aos olhos e ao mesmo tempo que foge. Há uma tentativa de buscar em suas paisagens, enquanto observador, uma figuração. O processo de querer ver algo é automático, mas Heloísa não deixa evidências perceptíveis, nem limites concretos. Não há pistas mas a buscamos e, nesse estado, somos confrontados com a nossa própria consciência e trazidos de volta à ela. Num movimento antagônico - novamente - as mesmas questões que antes projetávamos e procurávamos encontrar na obra agora são nossas. Os porquês voltam com intensidade a nós.

Nesse movimento, espectador versus obra, o conceito Heideggeriano de Dasein* (ser-no-mundo) parece também evidenciar-se através das suas composições. Vemos - ou melhor - tentamos ver algo que se comunique conosco. Uma resposta ou sugestão de como existir no mundo, como lidar com ele. Um eco para além da existência em si, um eco afora. Tal movimento é, se não, vão. Não há saída para as nossas primeiras impressões, são heranças que carregamos e carregaremos. Aqui, Heloísa parece reconhecer esse estado, aceitar o que de fato se é, com sua luz e sua sombra. Criando um momentum, sua obra funciona como uma experiência estética de religamento consigo mesmo. Em outras palavras, a artista nos revela a nós.

“Em nossa relação com o mundo, somos capazes de nos retirar dele. As coisas referem-se a uma interioridade como partes do mundo dado (...) A arte as faz sobressair do mundo e assim as extrai desse pertencimento a um sujeito”**. Heloísa não limita a obra a ser mais um objeto no mundo, ao invés disso, cria um mundo nela. Mundo esse que comunica-se vivamente com quem o observa, não há como não ser impactado pela obra e por si mesmo diante dela.

Tal como as pinturas de Turner, a sugestão de sentidos, momentos e tempo - vento, tempestade, entardecer - são criadas a partir de gestos rápidos e não limitados pela linha. As formas habitam no campo da impressão e expressão, podem ser algo e podem não ser. A fluidez, aqui, é outra ferramenta que também conduz o olhar. Sua obra é um trânsito entre mundos. É sobre sensação.

“Mas o homem que torna a entrar pela `porta na muralha´ nunca será exatamente igual àquele que por ela saiu. Será mais sábio, mas menos presunçoso; mais feliz, mas menos autocomplacente; mais humilde no reconhecimento de sua ignorância, mas também mais bem equipado para compreender a relação entre as palavras e as coisas, entre o raciocínio sistemático e o Mistério insondável que, sempre em vão, ele tenta compreender”.*** 

Através dos trabalhos reunidos, Heloísa Franco parece nos apresentar uma “porta na muralha”****, uma saída outra para defrontar a existência e também existir. Essa apresentação é feita através do silêncio, de forma sútil. A artista nos convida a refletir sobre tudo e também aceitar o nada.

 

Breno Liguori

São Paulo, março de 2022

*  HEIDEGGER, M. Ser e tempo (1927), tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2002.

**LEVINAS, Emmanuel. Existence and Existents (1978), Duquesne University Press, 2001, p.52.

***HUXELY, Aldous. As portas da percepção e céu e inferno. 3ª reimpressão, Biblioteca Azul, 2018.

****Referência ao conto “The door in the wall” de H. G. Wells (1866-1946).

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