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ÁS, Camile Sproesser

Camile Sproesser: expressões do inacabado

A pintura recente de Camile Sproesser inaugura novos campos de cor. O contraste de pigmentos neon cedeu lugar a passagens tonais mais suaves e integradas. As cores são menos ofuscantes, e as tintas, menos adensadas. O uso da tinta óleo, antes sobreposta em camadas aveludadas, agora cria superfícies ralas e translúcidas que deixam à vista o traço do desenho e a trama do linho. É como se nos trabalhos atuais estivesse visível uma estrutura que subjaz às pinturas produzidas em 2020 e 2021. Algo que vai no sentido de uma subtração de matéria, em que figuras e assuntos centrais permanecem, mas um ambiente pictórico consideravelmente novo se revela. 

O Fauno, as Ninfas, a lira, a flauta, as máscaras, o protagonismo do corpo feminino e dos animais seguem interessando à pintura de Camile. Na série atual, esses elementos surgem como figuras vaporosas cuja fatura e o cromatismo podem remeter a afrescos e murais. Vasari, em um capítulo dedicado precisamente aos afrescos e murais, comenta que uma das dificuldades dessa técnica é a impossibilidade de retoques depois de seca a parede e que, portanto, “tal tipo de pintura precisa ter vigor, bom desenho, força, vivacidade (...) que demonstre arte e não excessivo esforço, pois tais cenas precisam ser vistas e reconhecidas de longe”.(1) Apesar dos séculos que nos separam de Vasari, é possível arriscar que a combinação por ele apontada esteja reunida no conjunto de Camile. Embora a artista prefira o linho à argamassa fresca, sua pintura de desenho preciso e poucos retoques, com imagens concisas e gestos claros, pode, de fato, funcionar à distância. 

O desenho dos pisos poderia lembrar certas pinturas do Renascimento,(2) não fosse a leve distorção de sua perspectiva, que, ao invés de abrigar e acomodar as figuras em cena, as deixa soltas, em flutuação no primeiro plano – é o caso de Três de copas, Enforcada e Amantes. Em contrapartida, figuras supostamente mais etéreas, que não parecem habitar ambientes terrenos, como o Sol, a Estrela e a Lua, estão solidamente aterrissadas, seja no dorso de um leão, de um boi alado ou sobre uma superfície orgânica. A Louca e a Centaura, por sua vez, poderiam ser pensadas como pinturas de passagem entre o mundo terreno e o celeste. À beira do despenhadeiro, a Louca vaga com seu cão por esse vertiginoso entre-mundos e tem uma escala menor do que as demais protagonistas, enquanto a Centaura encarna um corpo dual, que encerra em si naturezas distintas, e cavalga solitária num ambiente soturno, cuja luz difere radicalmente das outras pinturas apresentadas.

Reunidas em seu conjunto, as pinturas nos envolvem num ambiente imersivo. Se é possível imaginá-las como afrescos para serem avistados de longe, de perto elas ganham fisicalidade, como se sua escala lhes permitisse conviver conosco no espaço. Dessa curta distância, participamos de uma atmosfera no mínimo instável, já que a luz homogênea que recai sobre elas e a ausência de sombras projetadas nos colocam diante de uma outra construção de mundo. Um mundo que, em vários aspectos, poderia evocar as pinturas romanas da virada do cristianismo – como aquelas que povoaram a vida cotidiana dos palazzi e casas de Pompeia, até a cidade ser soterrada pelas cinzas do Monte Vesúvio (79 d.C.). Marcadas por figuras em primeiro plano e profundidade reduzida, pela ênfase no desenho e cenas mitológicas que se dissipam,(3) os novos trabalhos de Sproesser nos remetem constantemente aos afrescos romanos feitos sobre as paredes do pré-cristianismo. 

O imaginário pagão retratado pela artista se combina a vários outros universos simbólicos que informam sua obra. Na construção de suas cenas, seres humanos se misturam a personagens mitológicos e forças da natureza. O corpo feminino é também Sol, Estrela, Lua, e conjuga-se à Centaura, ao Fauno, às Ninfas. A nudez está presente em todas as pinturas, envolta num conjunto de símbolos que parece anterior à relação entre corpo e pecado. Daí seria possível supor uma sensualidade que ultrapassa em muito o genital, ou o desejo masculino. Nesse movimento centrífugo, que não orbita em torno do masculino, a sensualidade se desdobra em relações inauditas com o mundo natural e ritualístico. Algo como um manancial de força, assentado num plano profundamente feminino e espiritual, que não se encerra em uma forma, mas aceita correr o risco do desconhecido para ir um pouco além. Uma feminilidade que goza em direção à desmesura.(4) 

Se os trabalhos de Camile podem ser imaginados tanto como afrescos ao longe, ou como pinturas que criam ambiência por sua proximidade, poderíamos pensá-las ainda em uma terceira perspectiva: sobre a palma da mão, como cartas de um tarô. A artista se vale de combinações iconológicas presentes nos arcanos maiores (as 22 cartas próprias do tarô) e nos arcanos menores (o baralho comum, de quatro naipes, acrescido do cavaleiro entre o valete e a dama) para construir suas cenas. O título da exposição, Ás, se remete justamente à primeira carta do baralho, um portal entre os arcanos maiores e menores, que abre caminhos e marca o início de um trajeto a ser percorrido. 

Sobre a ampla e polivalente iconografia dos arcanos, suas pinturas somam novos símbolos e alegorias. O tarô, assim como a obra de arte, nos convida a ler imagens sempre inacabadas para desvendar histórias sobre o que não sabemos. Em um, como na outra, estamos diante de máquinas de imaginar. “Adivinhar é imaginar com justeza”,(5) disse certa vez Oswald Wirth, ocultista e estudioso do tarô. Mas, se o tarô busca a imaginação justa para decifrar nosso caminho no mundo, a arte talvez esteja mais propensa a explorar os vários caminhos do mundo dentro de nós. 

É possível supor que a feminilidade, o tarô e a arte guardem em comum expressões do inacabado. O vazio que sustentam – o que não se tem, o que não se sabe – não se confunde apenas com a angústia da falta, mas é fonte de sua ilimitada potência de criação. É justamente esse desbordamento que se apresenta reiteradamente no trabalho de Camile Sproesser. Nele, não se trata de trilhar um só caminho, mas vários ao mesmo tempo – o afresco distante, a pintura cercana, a carta sobre a mão. Aproximar-se de sua obra é também deixá-la fugir para então persegui-la por suas passagens erráticas, suas pistas paradoxais e suas imagens ambíguas. É na incerteza desse trajeto que passamos a conhecê-la, sempre de soslaio. Porque, talvez, o que mais interesse não seja tanto identificar os símbolos representados, ou definir um cânone de pintura, mas a possibilidade de movimentar-se entre um e outro universo simbólico, entre este e aquele referencial formal, ou seja, mover-se junto com o nomadismo de sua força de criação. 

Marilia Loureiro
curadora e pesquisadora

(1) Giorgio Vasari, As vidas dos artistas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011. p. 53.

(2) Arte dos séculos XV e XVI, período que, segundo Argan, “continuamos chamando de Renascimento, mais por hábito do que por convicção”. Refiro-me aqui especificamente à pintura renascentista de vertente florentina, que privilegia o desenho, o contorno e os ambientes em perspectiva.

(3) Roger Ling, Roman Painting. Cambridge University Press, 1991, p. 101.

(4) Maria Rita Kehl, “O peso da feminilidade”. 2003. Disponível em: https://www.facebook.com/mariaritakehloficial/posts/260961111109863/

(5) Epígrafe do livro El tarot: o la maquina de imaginar, de Alberto Cousté. Barcelona: Barral Editores. 1974.

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