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A adoração de um estranho lobo chamado Júpiter, Camile Sproesser

O Projeto Vênus tem o prazer de apresentar a segunda exposição individual em São Paulo da artista Camile Sproesser. Em A adoração de um estranho lobo chamado Júpiter, um repertório oriundo das mais variadas fontes narrativas, articulam-se em fabulações contemporâneas fantásticas. Impregnada de uma tonalidade expressiva vigorosa, a pintura de Camile por vezes alcança uma paleta estridente, como se a composição cromática emulasse um desejo de perfuração do real, ultrapassando o espaço bidimensional em um colorido lancinante. Energia pictórica e vital que se move pela forma de um páthos, conceito e expressão das diversas maneiras de se vivenciar e de se exprimir no mundo que de forma marcante caracterizam o trabalho de Camile.

 

A noção de páthos contém o vigor das palavras que atravessam o tempo e o espaço, sendo seu sentido alterado ou invertido ao sabor das dinâmicas sociais do momento. A via de aproximação da poética de Camile se dá pela qualidade das indeterminações associadas ao páthos; a acumulação de sentidos e suas ambiguidades. Por vezes em pólos aparentemente opostos, mas refletidos, o páthos, como a marca do ser patético, é tanto movido pelo afeto, pelas paixões, pelo espanto e pela perplexidade como pela noção de patológico. Percorrer a etimologia do páthos e ir tão longe no tempo para pensar uma produção cuja superfície exala o aqui e agora, em sua forma, nas suas cores e no seu jeitão desavergonhado de falar do mundo, pode soar anacrônico. Mas explorar essa via de acesso para acercar as pinturas de Camile Sproesser possibilita uma conexão que preserva o que há de mais interessante no trabalho dessa jovem artista. Na esfera sublunar onde suas pinturas se situam, é o páthos, com sua energia passional, o regente do fazer pictórico. Páthos como paixão, excesso, movimento, liberdade e em toda a sua complexidade. Longe do senso comum, que é incapaz de reconhecer em tais pulsões uma fonte válida de conhecimento e de articulação do pensamento, as pinturas de Camile se valem da multiplicidade desses atravessamentos e estratos simbólicos em suas composições. 

 

 “Acredito que tudo que a gente olha, ouve, sente se transmuta no inconsciente e vem à tona no trabalho. É alquímico”. É assim que a artista expõe as suas fontes, referindo-se às narrativas pessoais e fabulosas que a interessam de maneira desierarquizada. Um sistema no qual deuses pagãos, orixás, ocultismo, tarô, seres fantásticos e boa parte do manancial simbólico oriundo desse repertório habitam seus quadros. Entretanto, seria um grande equívoco pensar que essa multiplicidade ficcional pudesse elidir o seu interesse pela realidade, como se a imaginação como potência promovesse o afastamento ou a desconstrução do que podemos entender sobre o real. O movimento promovido é, ao contrário, de abertura e criação de possibilidades, sobretudo na direção de romper sistemas e códigos que pesam sobre nós há muitos anos. 

 

As pinturas apresentadas em A adoração de um estranho lobo chamado Júpiter refletem esse desejo, e expressam um sistema de forças e ambivalências que está na arqueologia desse imaginário. São obras produzidas ao longo dos últimos meses, mas tanto Júpiter, quanto Telepathy são fachos incandescentes desse conjunto. Elaborados a partir de sua experiência pessoal, de ser tomada por uma paixão virtual em meio a pandemia do Covid 19, falam, a partir do desejo amoroso, sobre os sofrimentos associados a ele, como a perda, o desassossego e a loucura. No primeiro, a artista constrói seu objeto de desejo como o deus Júpiter, um misto de personagem mítico religioso com um jovem hipster. Entretanto, entender o procedimento de personificação de Júpiter colado na ideia de “adoração” mencionada no título, deve provocar mais desconfiança do que certezas. Não há nenhum indício que faça crer que haja ingenuidade da parte da artista em relação ao amor como um ideal harmônico, nem a adoração, como um aspiracional de relacionamento. Uma hipótese seria pensar na predominância da idolatria como a face obscura da cultura visual contemporânea a qual sua crítica estaria dirigida. Em Telepathy, contra um céu azul escuro e melancólico, em uma composição cromática bastante enxuta, dois patos copulam à luz da lua cheia, em uma lagoa de vegetação assombrada proveniente de um sonho delirante. Entre os patos, assim como ocorre com a maioria dos pássaros, é a fêmea que escolhe o macho com quem vai acasalar, por critérios puramente estéticos, de acordo com o que Darwin chamou de “seleção sexual”.  

Os animais, aliás, são recorrentes em grande parte das pinturas de Camile, ora assumindo uma figuração mítica, ora destituídos de qualquer projeção. Em Head of Orpheus, um tigre vigia a cabeça cortada de Orfeu, como se não pudesse ter impedido que uma tragédia maior se sucedesse, chegando tarde demais. A sensação de fracasso diante da perda domina a tela: a poesia não salvará o mundo, o amante não recuperará o amado e a música não será mais tocada. Nesse ambiente desalentado, a noite figura como redenção, como a esperança de que tudo, talvez, não tenha passado de um sonho. A noite, por sinal, sempre carregada de uma latência imprevisível é também figura e fundo em Self-portrait as Nyx. O rosto sedutor de Camile, perfigurada como a deusa da noite, filha do Kaos, é mais uma alegoria que se coloca entre o sentido manifesto e o latente da composição. A frase de Simone de Beauvoir, “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” cabe aqui como uma das possibilidades subjacentes (e não exclusiva) à construção desse retrato cuja temática reverbera em suas próprias posições políticas a respeito da construção da identidade do eu feminino, da militância feminista e suas lutas. Em contiguidade com o autorretrato, Shrooming painters, obra na qual três mulheres seminuas dançam em plena liberdade e autodeterminaçãoo sobre seus corpos, sugere um certo deboche em relação à pintura como médium. Uma celebração do domínio do prazer e do direito ao gozo em um território (da pintura) historicamente estereotipado e objetificado pelo olhar masculino.

 

Dos retratos às narrativas delirantes, a ousadia do trabalho de Camile Sproesser está na maneira com a artista se arrisca a desafiar a imagem, seus paradigmas e suas fragilidades.  A construção teatralizada da cena, o recurso à sátira, ao humor e à ironia ao mesmo tempo que tiram a pintura do pedestal em que a história da arte a colocou, são portais generosos que convidam o espectador a adentrar seu trabalho. Mesmo que no momento seguinte essa empatia possa se configurar em uma sala de espelhos da qual não se pode sair ileso. Porque é bom lembrar, mesmo quando brinca com suas referências e citações, ou quando alcança a beleza tremeluzente em alguns dos seus melhores trabalhos, não há um que escape o desejo de travar uma disputa acirrada com uma certa política de gênero do olhar, arrebentando sistemas e códigos, elaborando uma produção na qual a subjetividade é tanto política quanto afetiva e passional.

Patrícia Wagner
curadora independente

Os animais,

olhar muito para o marinheiro

para que o rosto não se perca

em sal, espuma

 

e ainda que pareça inútil 

ancorá-lo à terra

com o que levanta voo

 

(ave em cujas entranhas

noutra ciência 

leríamos augúrios

lira por tanger

onça domada

alcateia

dança furiosa)

 

um homem sob um astro

que é - espera, ajusta o foco - 

um filhote de lobo

 

tudo uiva

para a lua, para júpiter

agora, aqui

noutro hemisfério

Angélica Freitas

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