Cósmica Slop Slop, Yan Copelli
No espaço íntimo da casa, os pés calçam meias velhas e chinelos e se arrastam pelo chão. A privacidade permite o descompromisso da roupa e da postura. Na cama, o corpo imagina e sonha seres anômalos e formas híbridas. Fora desse campo reservado a lógica parece ser outra: o andar apressado pelas calçadas urbanas desvia das cascas de banana e do vômito, o dejeto e o abjeto que às vezes perturbam a visão e causam asco.
Reconheçamos a hierarquia do mundo: a roupa limpa vale mais do que a suja, tudo que é detrito é escondido, aquilo que entendemos como topo costuma ser associado à cabeça que, junto com as mãos, comumente serve de metáfora para o pensamento e a inteligência humana - em oposição aos pés, tão próximos do solo, rebaixados à tarefa de responder a comandos cerebrais e transportar o corpo. O que é baixo não é só um lugar, é um valor.
Em Cósmica Slop Slop, Yan Copelli dá visibilidade a imagens chãs que com frequência escolhemos não ver ou não mostrar. As havaianas velhas, o saco escrotal, a meia esgarçada, a água preta que sai da torneira, as pétalas, folhas e caules murchos, os pés dos dedos compridos demais, mas também aquilo que não conseguimos nomear, formas que não se deixam classificar, estremecendo os limites entre humano e inumano.
Esses limites são borrados sem, no entanto, que as criaturas de Copelli sejam a junção de pessoas com máquinas. O cosmos criado pelo artista não é o dos ciborgues. Não vemos nele uma desumanização das pessoas tornadas coisas, mas antes a humanização dos objetos e vegetais. A escultura Relax, da meia usada que ganha um rosto, é feita com alguns tons de cinza que remetem ao tecido carregado de suor, o objeto tornado criatura é aquele que teve contato com o calor da pele e os fluidos do corpo. A peça de roupa usada não se torna descartável, morta do ponto de vista do seu valor de uso: alguém esteve ali, calçou-a, é isso que dá a ela certa sobrevida. Esse, aliás, parece ser o princípio que rege todas as esculturas aqui presentes: para que elas tenham valor, precisam ter sido consideradas inúteis.
Mas o que acontece, então, quando o que é da ordem do sujo, do descartável, do asqueroso e do inútil retorna? Estes seres criados por Copelli não voltam como o monstruoso que foi recalcado, não assombram. Pensemos nos filmes de David Cronenberg, repletos de vísceras, sangue, corpos estranhos, formas vivas inusitadas: os temas se aproximam dos escolhidos por Copelli. O tratamento dado a eles, no entanto, parece diametralmente oposto. Em Cósmica, não se trata de chocar o observador embrulhando seu estômago. Tudo o que vem do mundo baixo aparece de forma inofensiva e, em alguns casos, até mesmo graciosa. É o que vemos na escultura Passeio, da casca de banana que se equilibra como pernas esbeltas que desfilam. Ou ainda na pintura Bicho, em que dois pés e batatas da perna se ligam a um saco escrotal representado sem o pênis. Livre da conotação do masculino dominador que costuma acompanhá-lo, ele se transfigura em cabeça pequena e simpática.
Se as figuras aqui apresentadas não vêm nos perturbar, também não me parece certo dizer que elas vêm para impressionar ou tomar o lugar daquilo que domina e oprime. Mais do que subverter a hierarquia do mundo, o conjunto dessas obras parece dissolvê-la: o que estava na base da pirâmide não passa a ocupar o topo. Tudo está lado a lado. Que querem esses seres? O direito de existir. Para conquistá-lo, não ocupam grandes espaços, não ofuscam o resto do mundo, não são violentos. Existem com calma, numa espécie de alheamento. Aí está, me parece, seu grande valor: longe de disputas fálicas, sem oferecerem imponência, lisura, limpeza, frescor, eles conquistam sua plenitude. Isso aparece até mesmo em Slop Slop, única escultura feita de bronze. O material mais nobre do que os das outras peças avizinha-se a elas pelo que lhe dá forma: o líquido de semelhança viscosa que sai de uma cavidade. Também é assim na escultura Escorrega e na pintura Ponte, as maiores peças do conjunto. A casca de banana, associada à possibilidade do tombo, ganha peso e tamanho para tornar-se o que seu nome anuncia: um escorregador, construção que convida o corpo à brincadeira e à indisciplina. Os grandes pés da pintura Ponte, apesar da postura desbravadora na natureza, não trazem mãos capazes de destruir o ambiente. Conduzem a si mesmos, pois o que parece contar é o passeio, o percurso.
Cósmica Slop Slop poderia ser lida como o sonho possível do Antropoceno. A natureza exuberante dá lugar ao jardim das anomalias, a cabeça humana, que só foi capaz de pensar projetos edificantes, mas também destruidores, desapareceu. As mãos derretem feito velas. Neste cenário da ruína, sonhar com a abundância material, a visualidade apolínea e o império da novidade parece uma cilada, tentativa de retomada do passado que não volta mais. São tempos de destroços. As peças de Copelli nos desafiam a formar espécie de imaginário a contrapelo, uma comunidade em que tudo e todos os que foram associados ao campo da vergonha ou jogados na lata do lixo podem finalmente existir sem serem rebaixados ao estatuto de resto, para usar expressão da antropóloga Maria Elvira Diaz. No meio do fim do mundo, a festa dos que sempre ficaram fora da festa.
Natália Leon
Pesquisadora em Filosofia da Arte