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Há olhos nos encarando por toda parte, espécie de uma pareidolia excessiva.

Eles emergem de superfícies não-humanas e extra-humanas; ocupam o centro de uma flor irregular, se projetam de um fundo azul misterioso ou humanizam uma singela cuequinha. Nada aqui fala a mesma língua, mas tudo insiste em se comunicar. Frente a nossa incapacidade constante de distinguir realidade e ficção, como dizer onde começa e onde acaba a fantasia? Pois eis a sensação diante dessa primeira exposição individual de Yan Copelli: uma estranha familiaridade.


Na medida em que transforma os fragmentos mais absurdos em personagens,

é possível dizer que Copelli nos aproxima do território da fábula, gênero literário cujo deslocamento do real está a serviço das lições de moralidade. Sabemos, porém,

que todo espaço de moral é também território fértil de perversão. Nessas pinturas destituídas de narrativa, o que pode soar fofo ou ingênuo rapidamente se converte em inquietante aberração (o girassol de boca aberta está cantando em júbilo ou emitindo um grito de horror?). Igualmente, não é raro enxergar nessas criaturas ambíguas um contorno erótico. Elas ostentam formas fálicas, anais e vaginais que assumem os mais variados caprichos, entre caules alongados, carpelos e orifícios que se situam entre o imaginário infantil e a perversão polimorfa. Se nos instigam sedução, também são grotescas ao seu modo, pois reivindicam a estranheza de seres deformados e um tanto monstruosos, fazendo lembrar que é propriedade do fazer pictórico metamorfosear a própria carne da imagem. Mesmo por isso,

as personagens do artista — que parecem migradas de um excêntrico desenho animado — não estão à serviço de lei alguma, antes existem enquanto

fragmentos que assumem a bizarria (tão incongruente em tempos de aparências instagramáveis) enquanto protagonista. São híbridos, mosaicos, quimeras gestadas em estado de sonho, sendo a um só tempo criaturas de realidade social e seres emergidos da especulação ficcional. Elas nos induzem a estímulos necessariamente contraditórios e resistem a qualquer sentido unívoco.

Curioso é que essas figuras se afirmam sobre fundos abstratos, como se tivessem suspensas no espaçotempo. Não pertencem a nenhuma geografia, não fetichizam identidade cultural alguma, ao contrário, buscam certa desterritorialização.

Falta-lhes gênero. São virtuais? Fantasmáticas? Alucinadas? O que sabemos é que, apesar da aparência algo silenciosa, sua fragmentação é uma espécie de rebeldia e insubordinação, propriedade do que é monstrum.

E tal suspensão age como se reposicionasse e embaralhasse tanto as noções de natureza quanto as de cultura. Uma não é mais objeto de apropriação da outra,

mas condições reflexivas de um mútuo engendramento. Daí lembramos que

“todo ser vivo é apenas uma reciclagem do seu corpo, uma manta de retalhos construída a partir de uma matéria ancestral”, como tão bem ensina

Emanuele Coccia.

 

Não seria absurdo também identificar no repertório de Copelli um eco de Tarsila na sua versão mais delirante; os contornos penumbristas e metafísicos de um Ismael Nery ou a abstração dissimulada e ambivalente de um Cícero Dias. Aos que insistem em declarar que o onírico nunca foi grande matéria da pintura brasileira, sugiro que refaçam seus itinerários. Aqui, a prática artística indica que é território privilegiado da fantasia engendrar imagens que expandam os horizontes negociáveis do possível — operação fundamentalmente política.
 

Já as esculturas, tanto as de clay e resina, cobertas de tinta a óleo, quanto as cerâmicas esmaltadas, apresentam um aspecto brilhoso de coisa ainda fresca e úmida, como se tivessem a um só tempo em processo de estruturação e decomposição. Parecem lambuzadas, lambrecadas, cuspidas da boca de um gigante. Pernas, braços e outros fragmentos antropomórficos figuram como animais invertebrados — minhocas que se arrastam pelo solo de um real estilhaçado enquanto ostentam flores kitsch. Noutro canto, uma meia furada serve de vaso

para um girassol de verdade, ambos saudosos de uma reintegração impossível.

São sobras de um apocalipse, vestígios de uma matéria orgânica desvanecida.

Pós-extraalém-de-humanos agenciando circuitos e modalidades de subjetivação;

ou certa melancolia camuflada de fofura.


Outro dia, enquanto conversávamos, Copelli me disse que essas obras (todas feitas a partir de 2020, já em contexto pandêmico), foram realizadas durante longas sessões madrugada adentro. Talvez por isso elas tenham a luminosidade de uma vela acesa. A luz se expande e se contrai continuamente, como no espectro de uma chama. São retalhos delirantes que nos tomam pelas mãos no escuro do presente. Ante ao desencantamento do mundo, elas sussurram dizendo que não há nada

mais real que o nonsense.

Pollyana Quintella
pesquisa, curadoria & crítica cultural

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