Melodrama, Olga Carolina
“Y quedo llorando, llorando, llorando, llorando, llorando, llorando Por tu amor...”(1)
Yo voy pintando, pintando, pintando, pintando, pintando, pintando...
“Você me vira a cabeça Me tira do sério Destrói os planos que um dia eu fiz pra mim
Me faz pensar porque que a vida é assim...”(2)
Confesso ter sido surpreendido pela quarta vez (3) com os convites inusitados e também formais que Olga Carolina me fez ao longo dos últimos anos, sendo a surpresa maior – e o mais recente deles – o pedido da artista para que eu escrevesse um texto para acompanhar Melodrama: sua primeira exposição individual na galeria Projeto Vênus, sediada na travessa Dona Paula 134, em São Paulo – na altura do número 95 da rua Coronel José Eusébio, face ao muro do cemitério da Consolação, numa das casas de tijolinhos à vista construídas nos anos 1940 para abrigar operários que trabalhavam na construção do bairro de Higienópolis –, cuja mostra será inaugurada na primavera de 2022.
Melodrama toma o espaço doméstico considerando a paranoia que também pode ser intrínseca a ele ou, ao menos, rondá-lo, a casa dessa antiga vila operária, na construção de um ambiente embebido numa paleta de cores saturadas e sonoplastia nauseante produzida em colaboração com Max Huszar especialmente para a exposição.(4)
E o que esperarmos de um pot-pourri rocambolesco, uma alegoria que colige a um só tempo e espaço, em seu enredo, flamenco, fado, bolero, salsa, gafieira, tango, tauromaquia, imagem de Nossa Senhora Aparecida, franjas, babados, veludo, organza, seda, renda, tule, tafetá, chenile, cabaré, teatro, tramas, texturas, encenação, espetáculo, simulacro, farsa, cena, cenário, sentimentalismo, conflitos, vítimas, luvas, chapéus, brincos, colares, camafeu, relicário, strass, leque, Roberto Carlos, sapatos, simpatia, promessa, espada, as gatas Vera e Tieta (5), camarim, penteadeira, a noiva, a morte, o drama, o visagismo, batom vermelho, rímel borrado, blush carregado, unhas pintadas, rosa branca, choro, lamento, febre, lágrimas, cintaliga, meia calça arrastão, correntes, cabideiro, arara, véu, broches, plumas, mangas bufantes, tatuagens, o fetiche, a Andaluzia, o disparatado, a comoção, a atuação, o frenesi, cinema, televisão, as dramatis personae (6), pranto, catarse, artifício, o looping embriagante, o disco arranhado, a penumbra, movimentos de zoom in zoom out, personagens de novelas mexicanas, Santo Antônio, o universo doméstico, o jogo entre voyeurismo e exibicionismo, público versus privado, o domínio da privacidade e o domínio da publicidade, Nossa Senhora das Dores, o riso de si mesma, o autoescrutínio a toda prova, catolicismo, um enredo quente, o clímax, vinho tinto, piteira, bordas vermelhas, corte, montagem, a capa de Elifas Andreato para o álbum de Paulinho da Viola, o exagero, terços portugueses, Ofélia, o rádio, a Igreja da Virgen de Los Dolores de Salamanca, rito, castanhola, saturação de cores, a Llorona De Los Angeles, David Lynch, Ricardo Correa da Silva RG 7943XXX (7)– Fofão da Augusta, No Porn, o clichê, o kitsch, o camp, Susan Sontag, Romaine Brooks, Frida Kahlo, excesso, erotismo, sedução, trans- bordamento, abandono, delírio, queda, Claude Cahun, Cindy Sherman, Amália Rodrigues – “Lágrima”, Chavela Vargas – “La Llorona”, Rebekah Del Rio – “Llorando”, Maria Creuza – “Tortura de amor”, Luz Casal – “Un año de amor”, Martírio – “Quisiera amarte menos”, Omara Portuondo – “No me vayas a enganar”, Estrella Morente – “Volver”, La Lupe – “Puro teatro”, Lolita (Lola Flores) – “A tu vera”, Lila Downs – “Alcoba azul”, Marcia – “Ronda”, Concha Buika – “Sombras”, María Dolores Pradera – “Toda una vida”, Maysa – “Meu mundo caiu”, Elis Regina – “Por toda a minha vida”, Perla – “Meu primeiro amor”, Elza Soares – “Vingança”, Maria Bethânia – “O meu amor”, Alcione – “Você me vira a cabeça (me tira do sério)”, espelhos, reflexos, máscara, maquiagem, biombo
e cortinas drapeadas?
Segundo a artista, em correspondência trocada por e-mail em 2 de agosto de 2022,
a exposição Melodrama foi pensada a partir do gênero teatral homônimo. Esse gênero é tipicamente associado ao uso exagerado de artifícios, como na caracterização, na trilha sonora e em gestos corporais, com o intuito de causar um forte apelo emocional no público. Nas obras apresentadas, procurei entender como o melodrama poderia acontecer dentro das especificidades da pintura. Compreendi que tais artifícios poderiam ser assimilados a partir de uma representação exagerada das expressões faciais e corporais, das múltiplas texturas dos panejamentos, objetos e maquiagens, bem como da própria atmosfera com o uso de uma luz teatral e direcionada (característica do barroco). Além disso, tenho me interessado pela construção de personagens femininas em obras melodramáticas, como nos filmes de Pedro Almodóvar e Bruno Barreto. Em sua maioria, notei que são retratadas com uma personalidade histérica, porém sem um olhar degradante, mas reconhecendo esse atributo como parte da constituição do ser.(8)
Todo o espaço arquitetônico do Projeto Vênus foi convertido numa pintura e, neste caso, numa pintura make-up, num rosto maquiado (9). Logo, as superfícies da “casa” e das demais obras que nela estão em relação parecem ter saído da maquiagem borrada do rosto pintado em formato de disco, de um espelho redondo do biombo-penteadeira articulável de jacarandá – constituinte da obra intitulada Llorona, situada na última sala da mostra. É como se essa pintura nuclear se irradiasse a partir dela, da rotação evocada e do cinetismo espiralado de seu formato de disco, bem como do jogo de espelhos que a abarca, uma atmosfera envolvente, caliente e, a um só tempo, ecoasse: Y voy pintando, pintando, pintando, pintando… Y quedo llorando, llorando, llorando, llorando… Um autorretrato em pose e gestos demasiado dramáticos que, na relação possivelmente estabelecida entre ele e as/os espectadoras/es, parece deixar em suspenso um jogo entre quem assiste e quem é assistido, quem vê e quem é visto.
As personas (10) encarnadas em tinta a óleo por Olga Carolina são antes de tudo assistidas por Paulino Rodrigues. O nome civil completo de Olga Carolina é Olga Carolina Paulino Rodrigues, e Paulino Rodrigues, a parte oculta de seu “nome de guerra”, de seu nome artístico, aqui parece mais outra personagem espanhola que se esgueira nessas imagens e cenas pintadas – como voyeur que é – para se deleitar com os gestos, poses e pistas deixados pelas pinturas de Olga Carolina. Na epígrafe de “Grotesco David com a bochecha inchada: Um ensaio sobre o autorretrato”, T. J. Clark (1943) cita Rousseau (1712-1778): “Montaigne pinta-se com verossimilhança, mas de perfil. Quem sabe se alguma cicatriz na face ou um olho vazado do lado que ele nos escondeu não teria alterado totalmente sua fisionomia”. Ao que acrescenta: “Estou convencido de que somos muito bem pintados quando nós próprios nos pintamos, mesmo que o retrato não mostre grande verossimilhança” (11). Os autorretratos e demais pinturas de Olga Carolina presentes em Melodrama – sim, é como se a artista se autorretratasse também nos/e a partir dos animais, objetos, acessórios e adereços que habitam essas pinturas – operam num movimento que ao mesmo tempo exibe e oculta, expõe e esconde, justamente por deixarem algo em suspenso e em suspense. Ademais, parecem deslocados, como se fossem deste e de outros tempos, ou melhor, reunissem temporalidades distintas e, talvez, inconciliáveis, desse modo revelando algo de incômodo, um tanto anacrônicos, montados, desmontados e remontados, trazendo consigo também, pelo transbordamento, uma espécie de autodeboche a toda prova em tempos ainda mais excessivos de facilidade, proliferação e banalização da selfie instantânea ao alcance das mãos. Ciente da força transgressora do riso, de que o riso desopila, maquiada, borrada, gargalhando e llorando como o clown – aquele que ri da insuficiência humana, a começar pela sua –, Olga Carolina doravante ri, antes de tudo, de si mesma.
As bordas que recobrem os chassis pintados de vermelho das demais pinturas, em diferentes formatos e dimensões, presentificam-se como chagas ou mesmo explosões de frutos e flores intumescidos carminados, ou ainda, bocas e lábios pintados com batom vermelho, são embebidas na sonoplastia embriagante e aludem aos procedimentos eisensteinianos (12) do cinema: a montagem e o corte – aquela cola invisível, como nos ensina Eisenstein, que confere andamento à narrativa. As imagens pintadas são recortadas, logo endossam o suspense supracitado, as narrativas suspensas; em meio a esses cortes, Olga Carolina apenas sugere.
E o clima? “O clima é dramático e fake.
Fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake fake…” (13)
Thiago Honório
Setembro de 2022
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1 Canção “Llorando”, Rebekah Del Rio. Álbum: Mulholland Dr. Ano de lançamento: 2001.
2 Canção “Você me vira a cabeça (me tira do sério)”, de Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, interpretada por Alcione. Álbum: Faz uma loucura por mim – Alcione. Ano de lançamento: 2004. Entre outras, essa música foi interpretada por Urias. Álbum: Você me vira a cabeça – Urias. Ano de lançamento: 2018.
3 As outras três vezes foram, respectivamente, em 2018 para me travestir num de seus figurinos-fantasias, usando um longo vestido construído com dezenas de luvas de látex amarelas sobrepostas em cascata e sendo submetido a uma sessão de maquiagem e penteado, posando para fotografias analógicas, digitais, realização de sketches, desenhos e uma pintura ao vivo. A segunda vez, em 2019, foi para dar continuidade ao processo de orientação de seu trabalho de conclusão de curso na FAAP, onde leciono desde 2006. E a terceira, em 2021, foi para ser submetido a outra sessão de maquiagem e fotografias para a realização de uma segunda pintura, relacionada a um universo que conjugava imagens de roca barrocas que Olga Carolina viu na cidade do Porto, numa viagem a Portugal, um tanto de El Greco, os filmes Nosferatu, de Werner Herzog, e Drácula, de Francis Ford Coppola. Aceitei os quatro convites, sendo o mais desafiador deles o de escrever este texto que acompanha Melodrama.
4 “Minha loucura tem trilha sonora | Minha casa é aberta [...] Eu sei quem eu sou | Eu sei quem eu sou | Eu sei quem eu sou | Eu sei, eu sei, eu sei, eu sei | Eu sei quem eu sou, eu sei onde estou | Eu sei quem eu sou, eu sei quem eu sou | Eu sei, eu sei, eu sei [...]”. Canção “Xingu”. Álbum: No Porn – Liana Padilha e Luca Lauri. Ano de lançamento: 2001.
5 As gatas vira-latas da artista que aparecem nas pinturas.
6 Ver SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês. Coleção Cinema, Teatro e Modernidade. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
7 In: FELITTI, Chico. “Ricardo Correa da Silva RG 7943XXX”. In: Ricardo e Vânia: O maquiador, a garota de programa, o silicone e uma história de amor. São Paulo: Todavia, 2019, p. 50.
8 Olga Carolina em correspondência por e-mail com Thiago Honório em 2 de agosto de 2022.
9 Algo que igualmente parecia irradiar da pintura redonda outrora intitulada Embranquece e engole suas estrelas torpes (mas também apelidada e/ou com seu título alterado para Tarsilona guilhotinada), 2019, óleo sobre linho, 80 cm de ø; desenvolvida no âmbito do trabalho de conclusão de curso intitulado Camarim, apresentado por Olga Carolina na FAAP em 2019. Ver: RODRIGUES, Olga Carolina Paulino. Camarim. Trabalho de conclusão de curso (artes visuais). São Paulo: Faculdade de Artes Plásticas/ Fundação Armando Alvares Penteado, 2019.
10 Ao se referir ao processo de criação de seus autorretratos, Olga Carolina diz: “[...] tais processos de caracterização podem ser entendidos como próximos à apresentação de um fragmento da identidade; como uma persona (grifo meu). Com origem no latim, esse termo, que tem significado de ‘máscara do ator’, também pode denotar papel social, personagem de um ator e a aparência que uma pessoa apresenta para o mundo. Eu o utilizo pois acredito que criamos, o tempo todo, diferentes personas, bem como nossas respectivas maneiras de apresentá-las enquanto máscaras”. In: RODRIGUES, Olga Carolina Paulino. Op. cit., p. 19. Sobre a questão, ver também: BELTING, Hans. Face and mask: a double history. Princeton: Princeton University Press, 2017.
11CLARK, T. J. “Grotesco David com a bochecha inchada: Um ensaio sobre o autorretrato”. In: SALZSTEIN, Sônia (org.). Modernismos. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 159.
12 Sobre essa questão, ver: EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002; ______. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002; ______. Reflexões de um cineasta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1969; e também: CARONE, Modesto. Metáfora e montagem. São Paulo: Perspectiva, 1974.
13 Canção “Baile de peruas”. Álbum: No Porn – Liana Padilha e Luca Lauri. Ano de lançamento: 2001.